sexta-feira, 21 de agosto de 2009

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Nem a rosa, nem o cravo...

Jorge Amado

As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira,
como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do
cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente
pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando
as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?Já viste um
loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os
hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome.
Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão,
da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas
coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas
estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o
mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo
se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros
que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos
variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que
falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos
crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo
as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a
cidade. Mas sobre todos esses quadros bóiam cadáveres de crianças que os nazis
mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos
campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns
fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais
destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as
populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u'a
nuvem inesperada num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras
inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido
destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento.Mas
sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal. Eles matam
crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles
desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais
romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a
sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias,
escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama. Como então
ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com
as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É
impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca
escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros
pardos, os monstros negros e os monstros verdes.Mas eu sei todas as palavras de
ódio e essas, sim, têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu
falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais
trabalhadas. Hoje só 0 ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só
0 ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do
coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que
nos impeça de ver qualquer espetáculo - desde o crepúsculo aos olhos da amada -
sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca.Jamais as tardes seriam doces
e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas
belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo,
sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus
olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem
conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais
mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei
palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma
flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma
arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a
desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam
esmagar a poesia, o amor e a liberdade!

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