segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Sobre o amor

Ferreira Gullar

Houve uma época em que eu pensava que as pessoas deviam ter um gatilho na garganta: quando pronunciasse — eu te amo —, mentindo, o gatilho disparava e elas explodiam. Era uma defesa intolerante contra os levianos e que refletia sem dúvida uma enorme insegurança de seu inventor. Insegurança e inexperiência. Com o passar dos anos a idéia foi abandonada, a vida revelou-me sua complexidade, suas nuanças. Aprendi que não é tão fácil dizer eu te amo sem pelo menos achar que ama e, quando a pessoa mente, a outra percebe, e se não percebe é porque não quer perceber, isto é: quer acreditar na mentira. Claro, tem gente que quer ouvir essa expressão mesmo sabendo que é mentira. O mentiroso, nesses casos, não merece punição alguma.Por aí já se vê como esse negócio de amor é complicado e de contornos imprecisos. Pode-se dizer, no entanto, que o amor é um sentimento radical — falo do amor-paixão — e é isso que aumenta a complicação. Como pode uma coisa ambígua e duvidosa ganhar a fúria das tempestades? Mas essa é a natureza do amor, comparável à do vento: fluido e arrasador. É como o vento, também às vezes doce, brando, claro, bailando alegre em torno de seu oculto núcleo de fogo.O amor é, portanto, na sua origem, liberação e aventura. Por definição, anti-burguês. O próprio da vida burguesa não é o amor, é o casamento, que é o amor institucionalizado, disciplinado, integrado na sociedade. O casamento é um contrato: duas pessoas se conhecem, se gostam, se sentem a traídas uma pela outra e decidem viver juntas. Isso poderia ser uma coisa simples, mas não é, pois há que se inserir na ordem social, definir direitos e deveres perante os homens e até perante Deus. Carimbado e abençoado, o novo casal inicia sua vida entre beijos e sorrisos. E risos e risinhos dos maledicentes. Por maior que tenha sido a paixão inicial, o impulso que os levou à pretoria ou ao altar (ou a ambos), a simples assinatura do contrato já muda tudo. Com o casamento o amor sai do marginalismo, da atmosfera romântica que o envolvia, para entrar nos trilhos da institucionalidade. Torna-se grave. Agora é construir um lar, gerar filhos, criá-los, educá-los até que, adultos, abandonem a casa para fazer sua própria vida. Ou seja: se corre tudo bem, corre tudo mal. Mas, não radicalizemos: há exceções — e dessas exceções vive a nossa irrenunciável esperança.Conheci uma mulher que costumava dizer: não há amor que resista ao tanque de lavar (ou à máquina, mesmo), ao espanador e ao bife com fritas. Ela possivelmente exagerava, mas com razão, porque tinha uns olhos ávidos e brilhantes e um coração ansioso. Ouvia o vento rumorejar nas árvores do parque, à tarde incendiando as nuvens e imaginava quanta vida, quanta aventura estaria se desenrolando naquele momento nos bares, nos cafés, nos bairros distantes. À sua volta certamente não acontecia nada: as pessoas em suas respectivas casas estavam apenas morando, sofrendo uma vida igual à sua. Essa inquietação bovariana prepara o caminho da aventura, que nem sempre acontece. Mas dificilmente deixa de acontecer. Pode não acontecer a aventUra sonhada, o amor louco, o sonho que arrebata e funda o paraíso na terra. Acontece o vulgar adultério — o assim chamado —, que é quase sempre decepcionante, condenado, amargo e que se transforma numa espécie de vingança contra a mediocridade da vida. É como uma droga que se toma para curar a ansiedade e reajustar-se ao status quo. Estou curada, ela então se diz — e volta ao bife com fritas.Mas às vezes não é assim. Às vezes o sonho vem, baixa das nuvens em fogo e pousa aos teus pés um candelabro cintilante. Dura uma tarde? Uma semana? Um mês? Pode durar um ano, dois até, desde que as dificuldades sejam de proporção suficiente para manter vivo o desafio e não tão duras que acovardem os amantes. Para isso, o fundamental é saber que tudo vai acabar. O verdadeiro amor é suicida. O amor, para atingir a ignição máxima, a entrega total, deve estar condenado: a consciência da precariedade da relação possibilita mergulhar nela de corpo e alma, vivê-la enquanto morre e morrê-la enquanto vive, como numa desvairada montanha-russa, até que, de repente, acaba. E é necessário que acabe como começou, de golpe, cortado rente na carne, entre soluços, querendo e não querendo que acabe, pois o espírito humano não comporta tanta realidade, como falou um poeta maior. E enxugados os olhos, aberta a janela, lá estão as mesmas nuvens rolando lentas e sem barulho pelo céu deserto de anjos. O alívio se confunde com o vazio, e você agora prefere morrer.A barra é pesada. Quem conheceu o delírio dificilmente se habitua à antiga banalidade. Foi Gogol, no Inspetor Geral quem captou a decepção desse despertar. O falso inspetor mergulhara na fascinante impostura que lhe possibilitou uma vida de sonho: homenagens, bajulações, dinheiro e até o amor da mulher e da filha do prefeito. Eis senão quando chega o criado, trazendo-lhe o chapéu e o capote ordinário, signos da sua vida real, e lhe diz que está na hora de ir-se pois o verdadeiro inspetor está para chegar. Ele se assusta: mas então está tUdo acabado? Não era verdade o sonho? E assim é: a mais delirante paixão, terminada, deixa esse sabor de impostura na boca, como se a felicidade não pudesse ser verdade. E no entanto o foi, e tanto que é impossível continuar vivendo agora, sem ela, normalmente. Ou, como diz Chico Buarque: sofrendo normalmente.Evaporado o fantasma, reaparece em sua banal realidade o guarda­roupa, a cômoda, a camisa usada na cadeira, os chinelos. E tUdo impregnado da ausência do sonho, que é agora uma agulha escondida em cada objeto, e te fere, inesperadamente, quando abres a gaveta, o livro. E te fere não porque ali esteja o sonho ainda, mas exatamente porque já não está: esteve. Sais para o trabalho, que é preciso esquecer, afundar no dia-a-dia, na rotina do dia, tolerar o passar das horas, a conversa burra, o cafezinho, as notícias do jornal. Edifícios, ruas, avenidas, lojas, cinema, aeroportos, ônibus, carrocinhas de sorvete: o mundo é um incomensurável amontoado de inutilidades. E de repente o táxi que te leva por uma rua onde a memória do sonho paira como um perfume. Que fazer? Desviar-se dessas ruas, ocultar os objetos ou, pelo contrário, expor-se a tudo, sofrer tudo de uma vez e habituar­se? Mais dia menos dia toda a lembrança se apaga e te surpreendes gargalhando, a vida vibrando outra vez, nova, na garganta, sem culpa nem desculpa. E chegas a pensar: quantas manhãs como esta perdi burramente! O amor é uma doença como outra qualquer.E é verdade. Uma doença ou pelo menos uma anormalidade. Como pode acontecer que, subitamente, num mundo cheio de pessoas, alguém meta na cabeça que só existe fulano ou fulana, que é impossível viver sem essa pessoa? E reparando bem, tirando o rosto que era lindo, o corpo não era lá essas coisas... Na cama era regular, mas no papo um saco, e mentia, dizia tolices, e pensar que quase morro!...Isso dizes agora, comendo um bife com fritas diante do espetáculo vesperal dos cúmulos e nimbos. Em paz com a vida. Ou não.

Belchior

Homenagem de hoje ao poeta e grande artista sumido. Cara, força pra você. E num demora muito pra voltar não. Você faz falta.

"Ele é um artista à nossa frente. Um artista à frente do seu tempo. À frente de todos os outros artistas." Suas letras têm conteúdo. Nos faz pensar. Pensar no mundo. Pensar nas pessoas. Pensar na vida. Pensar na gente.

Homem do bigode, volta logo.


Alucinação
Belchior

Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Nem em tinta pro meu rosto
Ou oba oba, ou melodia
Para acompanhar bocejos
Sonhos matinais...

Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente
Romances astrais
A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais...

Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais...

Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai
Do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!...

Cravos, espinhas no rosto
Rock, Hot Dog
"Play it cool, Baby"
Doze Jovens Coloridos
Dois Policiais
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida...

Mas eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Longe o profeta do terror
Que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais
Amar e mudar as coisas
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais...

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

!

Nem a rosa, nem o cravo...

Jorge Amado

As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira,
como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do
cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente
pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando
as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?Já viste um
loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os
hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome.
Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão,
da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas
coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas
estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o
mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo
se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros
que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos
variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que
falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos
crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo
as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a
cidade. Mas sobre todos esses quadros bóiam cadáveres de crianças que os nazis
mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos
campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns
fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais
destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as
populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u'a
nuvem inesperada num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras
inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido
destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento.Mas
sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal. Eles matam
crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles
desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais
romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a
sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias,
escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama. Como então
ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com
as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É
impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca
escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros
pardos, os monstros negros e os monstros verdes.Mas eu sei todas as palavras de
ódio e essas, sim, têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu
falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais
trabalhadas. Hoje só 0 ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só
0 ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do
coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que
nos impeça de ver qualquer espetáculo - desde o crepúsculo aos olhos da amada -
sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca.Jamais as tardes seriam doces
e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas
belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo,
sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus
olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem
conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais
mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei
palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma
flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma
arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a
desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam
esmagar a poesia, o amor e a liberdade!